O que é Ética Secular?
Sua Santidade o 14 º Dalai Lama disse que “no mundo secular de hoje, a religião apenas já não é mais adequada como base para a ética … qualquer resposta baseada na religião para o problema da nossa negligência com relação a valores internos nunca poderá ser universal, e portanto será inadequada. O que nós precisamos hoje é de uma abordagem para a ética, que não recorra à religião e que possa ser igualmente aceitável para os que têm fé e para os que não têm: uma ética secular”.(1)
Se ampliarmos o que consideramos “ética secular” para além de sua caracterização pelo Dalai Lama, podemos considerá-la como sendo uma parte da filosofia moral. Um especialista em ética secular vê os sistemas éticos como distintos e, por vezes, opostos à ética que é moldada pela orientação religiosa ou pela revelação sobrenatural. Apesar da grande variedade de pontos de vista filosóficos adotados por especialistas em ética secular, a maioria geralmente compartilha um ou mais dos seguintes princípios: que os seres humanos, por meio das capacidades inatas de empatia e compaixão, são capazes de determinar a conduta ética na vida; que pelo uso da lógica e da razão, os seres humanos são capazes de dar origem a princípios normativos de comportamento; que os seres humanos têm a responsabilidade moral de assegurar que as sociedades e os indivíduos ajam de acordo com estes princípios éticos; e que as sociedades devem “avançar” das formas menos éticas e justas para formas mais éticas e mais justas. (2)
É claro que, muitos tipos de filósofos morais imediatamente imporiam objeção dizendo que toda ética é secular, no sentido de que entende-se que o raciocínio moral deva ser baseado exclusivamente nas capacidades humanas para a lógica, razão e intuição moral, e que o comportamento ético possa ser cultivado e promovido por meios sobre os quais a religião não tem qualquer influência. Em outras palavras, habitualmente fazemos julgamentos morais sobre a integridade e a validade das prescrições éticas baseadas na religião. Para a maioria dos filósofos morais acadêmicos, a distinção entre a ética e a ética secular é redundante.
Mas esses tipos de objeções, ainda que sejam perfeitamente válidos, nos afastam da essência do que o Dalai Lama está apontando, e a sua citação não implica necessariamente que uma abordagem para o desenvolvimento de “valores internos” só seja adequada na medida em que possa ser universalizada. Sua afirmação é muito mais humilde, mais simples e tem a ver com a capacidade humana inata para receber, experimentar e oferecer a compaixão. Devido a esta capacidade inata, há pelo menos um sentido em que podemos tirar algumas conclusões sobre a relação entre a compaixão e uma compreensão universal (ou, no mínimo ampla) do comportamento ético.
O líder espiritual budista tibetano na verdade leva adiante uma visão bastante aristotélica de moral, quando diz que “a ética consiste menos de regras a serem obedecidas do que de princípios de auto-regulação interior para promover aqueles aspectos da nossa natureza, que nós reconhecemos como propícios para o nosso próprio bem-estar e o dos outros.”(3) Este é um exemplo do velho (mas ainda bom) vinho em garrafas novas. Há mais de 2.000 anos, registrado na obra sobre filosofia moral pela qual ele é mais conhecido – a Ética a Nicômaco – Aristóteles se estende sobre o tema da bondade moral e, especialmente da idéia sobre as virtudes morais que, “como uma habilidade, são adquiridos pela prática e habituação.” (4)
Aristóteles afirma que as virtudes morais são adquiridas apenas quando exercitadas, e assim infunde a imagem de moralidade como sendo irredutivelmente ativa, contextualizada na prática cuidadosamente calibrada das relações humanas dentro de uma comunidade social e política específica, em oposição apenas ao produto da moral independente do raciocínio ou da análise crítica. Tornamo-nos, em suas palavras, “justos apenas pela realização de atos justos, moderados por realizar atos moderados, corajosos realizando atos corajosos.” (5)
Certamente há um profundo desacordo sobre como proceder com a tarefa de selecionar “os aspectos da nossa natureza, que nós reconhecemos como propícios para o nosso próprio bem-estar e o dos outros.” Aristóteles teria um nome diferente para estes aspectos: virtudes. Em sua mente, o bom cidadão passa a vida em um estado de exercício contínua da virtude. Quais? Ele parece centrar-se especialmente, entre algumas outras, na generosidade, justiça, temperança, paciência e cordialidade. Sua Santidade, por outro lado, estabeleceu-se confortavelmente na compaixão como base para uma ética secular.
O Dalai Lama também chegou a distinguir dois níveis de compaixão.(6) O primeiro é o “nível biológico”, que se refere aos tipos de comportamentos amorosos instintivos que mamíferos tendem a demonstrar para com seus filhos, parentes próximos e grupos sociais. O segundo é “um nível ampliado, que precisar ser deliberadamente cultivado.” Este segundo nível de compaixão é adquirido como uma habilidade, através da prática e habituação.
Em um artigo postado na semana passada, o Diretor Científico Sênior do Mind and Life Institute, Wendy Hasenkamp, discutiu algumas evidências empíricas indicando que certos tipos de práticas contemplativas podem aumentar o comportamento compassivo. Sim, ainda há discordância filosófica fundamental sobre o que exatamente constitui “compaixão” e “comportamento”. Mas, ainda assim, esses estudos são promissores: mostram como o engajamento em práticas relativamente simples levam a mudanças concretas e mensuráveis na bondade e no calor humano – algo que Aristóteles, e até mesmo a maioria dos filósofos morais, provavelmente poderiam ficar para trás.
(1) His Holiness the Dalai Lama. (2011). Beyond Religion: Ethics for a Whole World. Boston, MA: Houghton Mifflin Harcourt, p. xiii
(2) Kidder, R.M. (2009). How Good People Make Tough Choices. New York City, NY: HarperCollins
(3) Beyond Religion, p. 18
(4) Aristotle. (1955). The Nicomachean Ethics. London: Penguin Books (original work translated by J.A.K. Thomson, 1953), p. 91
(5) Ibid
(6) Beyond Religion, p. 50
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Olavo
Bacana.