Como estar no corpo (sem querer fugir de dentro da própria pele)

Nós nos concentramos tanto em acalmar a mente que podemos esquecer que a meditação é uma experiência corporificada.

Foto de Adrian Swancar

A meditação acontece no corpo. Acho que quase todos nós podemos concordar com isso. Em várias práticas de meditação budista, a experiência corporificada é o objeto da nossa meditação – o abdômen subindo e descendo na respiração, o som que chega aos ouvidos ou as sensações na pele. No entanto, quando nos sentamos para meditar, muitas vezes acabamos tentando controlar e subjugar uma mente descontrolada, aparentemente esquecendo do papel do corpo na prática. Por que isso acontece? Parte da razão é que estar no corpo é difícil.

Para muitos de nós, o corpo pode ser um lugar doloroso e confuso porque os sentimentos*, de acordo com a compreensão budista, residem ali. O Buda não dividiu a experiência humana em uma simples dualidade de psique (imaterial) e corpo físico (material). Na verdade, ele ensinou que nossas experiências podem ser classificadas em cinco categorias chamadas skandhas, ou agregados: forma, significando o mundo físico; sensação; a percepção dessas sensações; formações mentais ou ações; e consciência. Nesse contexto, uma emoção não é um evento cognitivo singular, mas sim uma série de fenômenos que surge de forma interdependente que a mente percebe e se equivoca considerando-os independentes.

O intervalo de tempo entre a percepção e a resposta condicionada pode ser tão curto que nem fazemos distinção entre a experiência inicial e a reação a ela. Isso começa a mudar quando desenvolvemos uma prática regular de meditação. Como a meditação envolve o acesso e o aprofundamento da consciência, no final (gostemos ou não), começaremos a perceber aspectos do que pode ser chamado corpo-mente que antes estavam adormecidos.

Começamos a ver que esses sentimentos não surgem apenas no corpo; eles ficam armazenados lá. Como um sótão que acumula poeira e teias de aranha quando ignorado, nossa mente-corpo de sensações, lembranças e emoções pode se “desordenar”, resultando em uma vida emocional cheia de desafios. Assim como o corpo físico sofre quando não cuidamos dele, o mesmo acontece com o sistema corpo-mente. No entanto, muitas vezes ninguém nos ensina a cuidar de nossas mente-corpos emocionais, e assim, infelizmente, adotamos hábitos de entorpecimento, evitando e reprimindo as experiências que surgem no corpo. Isso se torna um problema ainda maior quando temos um trauma não resolvido ou uma lesão emocional grave.

Desenvolver a consciência do corpo e dos sentimentos que surgem nele pode ter um efeito extraordinário na desorganização das emoções à medida que começamos a nos sintonizar com partes de nós mesmos que podemos ter inconscientemente suprimido ou evitado por anos. Embora às vezes seja necessária a ajuda de um psicoterapeuta para nos ajudar a navegar e entender nossos sentimentos e comportamentos, cultivar mais consciência das sensações, sentimentos e emoções à medida que surgem no corpo por meio de uma prática de meditação consistente pode ser uma ferramenta poderosa para desfazer as diversas formas de rigidez energética que nossos corpos acumulam. Isso nos permite liberar com segurança algumas das tensões físicas e emocionais que mantemos no corpo.

Ao tomarmos mais consciência dos sentimentos, nós os trazemos para a superfície. Uma vez na superfície, praticamos para conhecê-los melhor com gentileza e amorosidade. À luz disso, começamos a ver que as sensações, emoções e sentimentos que surgem no corpo também precisam de atenção e cuidado. Quando enterramos os sentimentos, eles ficam retidos internamente e podem supurar, mas, se desenvolvermos a capacidade e a coragem de senti-los, podemos compreender que os sentimentos não são algo de que devemos temer e fugir.

Tradicionalmente, a lucidez é algo que cultivamos em etapas. A prática começa no corpo trazendo consciência à nossa forma física e à respiração. Construindo nossa prática lentamente ao longo do tempo, a mente-corpo condicionada tem a chance de avançar na prática com segurança.

No entanto, mesmo depois de saber que o corpo é o ponto de partida para a meditação, tenho visto muitos meditadores com dificuldades para desenvolver uma prática mais corporificada, mais em contato com os sentimentos. Queremos sair da cabeça, mas não importa o quanto tentemos, não sabemos como fazer isso.

Quando não conseguimos voltar para o corpo, algumas pessoas desistem ou encontram desculpas infinitas para não praticar. Outras ficam presos em uma abordagem estática imposta, buscando constantemente um enquadramento conceitual. Qualquer uma dessas abordagens basicamente se resume a um tipo de resposta ansiosa/evitante e nos leva ainda para mais longe do corpo.

Em vez de reforçar os hábitos corpo-mente que nos mantêm presos a padrões mais ativados do sistema nervoso, podemos nos voltar suavemente para o corpo com consciência interna, aumentando a capacidade de conhecer (ou sentir) e de fazer contato com a experiência interna no corpo. A consciência interna é uma qualidade natural quando o corpo está saudável e que podemos desenvolver através da meditação. Mas assim como os músculos do corpo podem se atrofiar quando não são usados, essa percepção interoceptiva pode enfraquecer. Felizmente, assim como outras habilidades, podemos retomar a prática e reaprender.

A seguir, uma pequena meditação que você pode utilizar para se reconectar com o corpo. Recomendo que você reserve 5 a 10 minutos para praticar:

  • Encontre um lugar tranquilo e um assento confortável para manter uma postura relaxada, mas alerta
  • Feche os olhos suavemente ou deixe-os abertos – o que for mais confortável.
  • Comece trazendo a consciência gentilmente para o corpo. Isso pode ser tão simples quanto detectar o contato com o assento ou com o chão em que seu corpo está apoiado
  • Continue tomando algumas respirações, aprofundando sua consciência enquanto começar a habitar seu corpo como um todo
  • Se precisar, tome mais tempo sentindo a almofada e o chão abaixo de você
  • À medida que o corpo se abre, continue convidando uma consciência calorosa para se conectar mais e mais ao que você sente diretamente no corpo
  • À medida que continua a sentir as sensações e energias no corpo, você pode gentilmente explorar “O que mais estou sentindo?”
  • Continue a ouvir profundamente o corpo sem pressa. Apenas observe naturalmente e sinta as sensações à medida que elas surgem
  • Quando estiver pronto, você pode encerrar a prática conectando-se novamente a uma sensação mais clara, como apoio do corpo no assento ou no chão

A consciência corporificada irá naturalmente se intensificar, conforme o tempo e a atenção que você dedica a ela. Cada vez que você se senta para praticar dessa maneira, simplesmente deixe-se abrir para o corpo e permita-se ser guiado pelo corpo.

À medida que a consciência interna se desenvolve na meditação, desenvolvemos a habilidade de perceber sensações cada vez mais sutis dentro do corpo. À medida que essa capacidade se aprofunda, notamos sua natureza mutável e transparente, e somos capazes de abordá-las com um coração mais curioso e compassivo.

Scott Tusa é professor de filosofia e meditação budista tibetana, orientador de práticas da Sanga Pundarika de Tsoknyi Rinpoche e ex-monge que estudou nas tradições Gelugpa e Nyingma.

*NT – “sentimentos” (vedanā, em sânscrito) neste contexto refere-se ao aspecto afetivo das experiências – agradável, desagradável ou neutro

Tradução livre de Jeanne Pilli do original