Impedimentos Históricos para o Surgimento de uma Ciência da Consciência no Ocidente

~ B. Alan Wallace
Excerto de “Ciência Contemplativa. Onde o Budismo e a Neurociência se Encontram

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Volto-me em primeiro lugar para as duas raízes da civilização ocidental: as tradições greco-romana e judeu-cristã. Um fator fundamental para o surgi­mento de uma nova ciência é o desenvolvimento de instrumentos refinados para observar e fazer experimentos com os fenômenos que estão sendo in­vestigados. O uso do telescópio por Galileu para observar o Sol, a Lua e os planetas exerceu um papel crucial para o surgimento da ciência da astronomia. O uso do microscópio por Van Leeuwenhoek para observar formas microscópicas de vida foi igualmente crucial para o surgimento da biologia moderna. Por isso, é sensato supor que uma ciência da consciência deva ser propiciada pelo desenvolvimento e refinamento de um instrumento com o qual os estados de consciência possam ser observados com rigor e precisão. Como o único instrumento de que a humanidade dispõe para observar di­retamente a mente é a própria mente, é ela que precisa ser refinada.

Muitos cientistas e filósofos ocidentais argumentaram que a suposta ob­servação introspectiva dos fenômenos mentais é radicalmente diferente da observação dos fenômenos celestes por meio do telescópio. Enquanto a mente teria que supostamente observar a si mesma, o telescópio é direcio­nado para algo com o qual ele tem apenas uma relação externa e eventual. De acordo com o comentário do filósofo John Searle: “Qualquer introspec­ção que eu faça em meu estado de consciência é ele próprio esse estado consciente… o padrão típico de observação simplesmente não funciona com a subjetividade consciente”.(2) Quando se diz que introspecção é “a mente observando a si mesma”; sugere-se com isso que uma mesma e única entidade – a mente – está observando uma coisa – a si mesma. Mas quando geramos uma imagem mental de uma rosa e a observamos, ela tem pelo me­nos uma similaridade com a observação da imagem visual de uma rosa. Para a maioria das pessoas, a imagem mental é muito menos estável, vívida e de­talhada, mas aquelas que praticam a visualização, ainda que moderadamente, podem no mínimo dizer qual é a cor da rosa que estão imaginando. E embora essa imagem esteja na mente, ela parece constituir um objeto de atenção, não a percepção subjetiva daquele objeto mental.

Para citar outro exemplo, mesmo com pouca prática é possível se detec­tar os pensamentos racionais e as imagens que perpassam a mente. Detectar tais pensamentos é muito semelhante a ouvir por acaso frases de uma con­versa que está sendo travada em outro aposento, e testemunhar tais imagens é semelhante a observar as imagens que pipocam esporadicamente na tela de uma televisão. Além disso, em sonho a pessoa pode observar uma vasta série de fenômenos mentais correspondentes aos cinco sentidos físicos e ter a nítida sensação de que a entidade que está diante desses eventos não é idêntica às próprias imagens mentais. Isso é ainda mais óbvio na ocorrência de sonhos lúcidos, ou seja, quando o sujeito do sonho percebe claramente que está sonhando.(3)

Em resumo, a experiência mostra que a percepção subjetiva não é necessariamente idêntica aos fenômenos mentais percebidos e que essa se­melhança não vai além da semelhança com as imagens sensoriais dos fenô­menos físicos pelas quais apreendemos o mundo ao nosso redor. A mente observando a si mesma não é a mesma coisa que um telescópio direciona­do para si mesmo. É mais como um sistema de medição detectando even­tos da mecânica quântica que são diferentes, mas têm relação com o instrumento de medição. Ambas são exemplos de “participação do obser­vador”. Quando observamos um pensamento ou notamos que estamos sentindo uma determinada emoção ou desejo, isso imediatamente influen­cia o fenômeno detectado. Isso obviamente não ocorre quando se observa os planetas com um telescópio. Mas esse tipo de interação entre o sistema de medição e os fenômenos medidos é característico da mecânica quântica. Portanto, não há razão para se acreditar que os fenômenos a serem estuda­dos cientificamente têm que invariavelmente existir independentemente dos meios de observação.

Em sua refutação da introspecção (enquanto, ao mesmo tempo, susten­ta quixotescamente, que a perspectiva da primeira pessoa sobre os fenôme­nos mentais é primária), Searle argumenta: “A ideia de que possa haver um método especial para investigar a consciência, ou seja, a ‘introspecção’, que se supõe ser uma espécie de observação interior, esteve desde o início con­denada ao fracasso e não é de surpreender que a psicologia introspectiva te­nha se revelado um fracasso”.(4) Existem muitas outras razões para o insucesso dos primeiros métodos de introspecção da psicologia ocidental, das quais a mais importante está na qualidade inadequada da atenção aplicada ao empreendimento. 

A atenção não treinada tende a se alternar entre momentos de agitação e de apatia e, portanto, para que ela seja usada como um instrumento con­fiável de observação e experimentação de estados de consciência, esses momentos alternados de agitação e apatia terão que ser substituídos por momentos de estabilidade e vivacidade. Apesar de os filósofos da Grécia an­tiga terem demonstrado evidente interesse pela natureza da mente, existem poucas evidências de que eles tenham desenvolvido algum meio sofisticado de refinar a atenção. É possível que a sociedade pitagórica e outras escolas secretas tenham criado tais métodos, mas se o fizeram, o conhecimento es­pecífico não foi preservado. Os místicos judeus também escreveram exten­sivamente sobre a natureza da consciência,(5) mas o desenvolvimento de técnicas para cultivar a atenção estável e focada na exploração rigorosa da consciência tampouco foi um traço forte dessa tradição.

No âmbito da tradição cristã, os primeiros patriarcas do deserto com certeza sabiam da necessidade de acalmar a mente, conforme se evidencia no influente livro do século XV sobre a prática contemplativa intitulado As Conferências de Cassiano,(6) No entanto, não se sabe da eficácia dos métodos criados pelos meditadores cristãos daquele período ou da posterior era me­dieval para treinar a atenção com o propósito de observar os fenômenos mentais. A conclusão amplamente difundida entre os místicos cristãos, quanto aos estados mais elevados de contemplação serem necessariamente passageiros, comumente não durando mais do que cerca de meia hora, pode indicar as limitações de seu método de treinar a atenção.(7) Essa insistência na natureza efêmera da união mística parece ter sua origem em Santo Agos­tinho(8) e vai se refletir quase um milênio mais tarde nos escritos do Mestre Eckhart, ressaltando que o estado de arrebatamento contemplativo é invariavelmente passageiro e que até mesmo seus efeitos residuais não duram mais que três dias.(9)

O advento da Reforma Protestante e da revolução científica acelerou o declínio da investigação contemplativa cristã com respeito à natureza da consciência. Devido à ênfase protestante no tema agostiniano da iniquidade essencial da alma humana e da extrema incapacidade do homem para alcan­çar a salvação ou conhecer Deus a não ser pela fé, não havia mais nenhum incentivo teológico para tal busca. A salvação era enfatizada como uma gra­ça concedida pelo Criador. Assim, a felicidade genuína, cuja experiência só é realmente possível na vida futura, não é de maneira alguma alcançada pelo entendimento da mente nem por meio de estados excepcionais de saú­de e equilíbrio da mente.

René Descartes e John Locke dedicaram-se profundamente ao exame introspectivo da mente, mas como seus predecessores gregos e cristãos, não conseguiram criar meios de refinar a atenção para que a mente pudesse ser usada como um instrumento confiável para a observação dos fenômenos mentais. Além disso, Descartes declarou que a alma é introduzida no corpo pela intervenção divina e que, já ali, ela exerce sua influência por meio da glândula pineal. Ele acreditava que essa glândula induz as ações voluntárias do corpo, enquanto todas as outras ações são reflexos. Talvez possa se atri­buir a essa crença parte do motivo de a mente só ter se tornado objeto de estudo mais de dois séculos depois de sua época. A mente era vista como estando fora das ciências naturais, cujo foco era o mundo exterior e objeti­vo da matéria. De fato, até as últimas três décadas do século XIX, a glândula pineal foi negligenciada singularmente pelos pesquisadores fisiológicos e bioquímicos. Embora vários fatores possam ser responsáveis por essa negli­gência, parece plausível que uma das razões estava no fato de essa área do cérebro ainda ser considerada fora do domínio da ciência natural.

Outra corrente que varreu a Europa no alvorecer da era moderna deu ainda mais incentivo para que a mente humana não fosse submetida à in­vestigação profunda: a insanidade da caça às bruxas que durou do final do século XV até a metade do século XVII. Durante todo esse período, qual­quer pessoa que mostrasse ter poderes mentais excepcionais, inclusive o poder de cura espiritual, tornava-se imediatamente suspeito de bruxaria. Quase todas as sociedades tradicionais acreditaram em bruxaria, mas a tra­dição cristã em particular atribuiu o poder das bruxas ao demônio, o que constituiu a base lógica do mandamento bíblico que condena tais pessoas à morte.(10) A crença comum em demônios e outras entidades espirituais va­gando pelo mundo natural (às vezes apossando-se de almas humanas) era profundamente incompatível com a emergente visão mecanicista do universo. Afinal, os cientistas não podiam estabelecer leis apropriadas para re­gular o mundo objetivo enquanto houvesse espíritos imateriais à solta, intervindo à vontade nas esferas do homem e da natureza. Assim, muitos fi­lósofos naturalistas do final do século XVI simplesmente os rejeitaram como ilusões. Mas havia ainda a crença amplamente difundida da vulnerabilidade da alma humana à possessão demoníaca, o que podia ser tomado como um sinal de alerta para tomar cuidado com as profundezas da mente humana. Foram necessários mais dois séculos para que a psicanálise ousasse iniciar a exploração científica dessa mata densa e escura das profundezas humanas.

Em resumo, a trajetória da ciência ocidental da época de Copérnico até a atualidade parece ter sido influenciada pela cosmologia cristã medieval, de acordo com a qual o inferno era representado como situado no meio da terra e do céu, como também nos confins do espaço. Outrossim, e especial­mente de acordo com a teologia dominante da Reforma Protestante, a alma humana, no centro subjetivo da experiência humana, era um antro de iniquidade, e a única chance de salvação estava em buscar uma fonte do bem absolutamente fora da mente humana. À luz desses fatos, dificilmente pode-se considerar acidental que a disciplina responsável pelo início da revolu­ção científica tenha sido a astronomia – o estudo dos fenômenos mais distantes do sujeito observador – e que a disciplina da psicologia enquanto ciência tenha levado mais três séculos para ser desenvolvida. E apenas nos últimos anos do século XX, a comunidade científica começou a considerar a consciência como legítimo objeto de estudo científico.

Apesar de vários psicólogos, inclusive William James, terem manifestado interesse pela consciência no século XIX, no início do século XX, o assunto havia se tornado tabu, particularmente nos meios acadêmicos norte-america­nos. Isso se deveu em grande parte aos cinquenta anos de domínio da psico­logia acadêmica pelo behaviorismo. Em 1913, o behaviorista americano John B. Watson, como já foi mencionado, declarou que os psicólogos deveriam evitar totalmente usar termos como “sensação”, “percepção”, “imagem”, “desejo”, “propósito” e até mesmo “pensamento” e “emoção”, uma vez que são definidos subjetivamente. E ele atribuía a crença na própria existência da consciência a antigas superstições e magias.(11) Quarenta anos mais tarde, B. E Skinner fez ecoar esse tema com a afirmação de que a mente enquanto tal ab­solutamente não existe, mas apenas enquanto tendências comportamentais. Mais uma década teve que se passar para que a futilidade de comparar os processos mentais subjetivos com tendências comportamentais se tornasse evidente para a sociedade científica. A abordagem behaviorista não fez nada para explicar a natureza da mente e muito menos da consciência; ela apenas reduziu esses fenômenos subjetivos a uma classe de processos objetivos que pudesse ser estudada com os recursos de que a ciência dispunha.

Com o surgimento da psicologia cognitiva durante a década de 60, a ex­periência subjetiva voltou a ter permissão para ocupar o domínio da pesquisa científica, mas o papel da introspecção na exploração da mente continuou sendo marginalizado, exatamente como ainda é no campo em progresso acelerado da neurociência. Em vez de comparar processos mentais com ten­dências comportamentais, os psicólogos cognitivos e neurocientistas os comparam hoje com processos neurais e suas funções. Os neurocientistas cognitivos descobriram muitos tipos de relações causais entre a mente e o cérebro. Eles constataram que os processos mentais são afetados de diversas maneiras quando a atividade mental correspondente sofre uma ruptura e que uma vasta gama de processos cognitivos influencia a atividade neural. Essas descobertas se resumem essencialmente às seguintes correlações: fenômenos neurais específicos (N) são correlacionados a fenômenos men­tais específicos (M), de maneira que se N ocorre, M também ocorre; e se M ocorre, N também ocorre; se N não ocorre, M tampouco ocorre; e se M não ocorre, N tampouco ocorre. Essas correlações poderiam implicar que a ocorrência de N tivesse um papel causal na produção de M, ou vice-versa; ou poderiam implicar que N e M fossem de fato o mesmo fenômeno visto de diferentes perspectivas. Não existe até hoje conhecimento científico sufi­ciente para determinar qual delas é correta. Além disso, enquanto a hipótese dualista não explica como fenômenos mentais subjetivos e imateriais po­dem influenciar o cérebro, a hipótese materialista tampouco explica o que permite que o cérebro produza experiências conscientes de qualquer espé­cie. Existem problemas difíceis ainda não resolvidos em ambos os lados des­sa disputa, mas os materialistas parecem muito mais convencidos da dificuldade de explicar como a consciência emerge da matéria.

Os fenômenos mentais vistos introspectivamente parecem ser tipos de processos radicalmente diferentes dos eventos neurais vistos objetivamen­te. Além disso, o foco voltado exclusivamente para o exame introspectivo da mente revela pouco, se não nada, a respeito do cérebro. Se os neurocien­tistas tivessem que confinar suas pesquisas apenas ao cérebro, sem referência a nenhum relato na primeira pessoa de experiência mental, eles não descobririam muita coisa sobre a mente. Na verdade, eles não teriam nenhuma razão, com base apenas nos eventos neurais, para concluir que tais eventos tivessem qual­quer correlação com absolutamente qualquer evento mental. Alguns neuro­cientistas reconhecem essa falha admitindo saber relativamente pouco a respeito do cérebro, ao contrário do conhecimento da mente adquirido por séculos de introspecção.(12) Mas o biólogo Edward O. Wilson, ao contrário, sustenta que a lógica extraída da introspecção é limitada e comumente não confiável, o que explica porque até hoje as pessoas sabem mais a respeito de seu automóvel do que a respeito de sua própria mente.(13) O consenso entre os psicólogos é considerar a introspecção um método não confiável para se investigar a mente. Com respeito ao atual entendimento da mente e da consciência, Daniel Dennett e John Searle comentam respectivamente: “A consciência é hoje o único tópico que deixa muitas vezes até os pensadores mais sofisticados com a língua presa e confusos”.(14) E “Quando o assunto é a mente, nós ficamos tipicamente confusos e em desacordo”.(15)

Se fosse dado aos cientistas um novo instrumento para observar algum tipo específico de fenômeno natural, o primeiro passo lógico a ser tomado antes de usá-lo seria examinar sua natureza, incluindo suas vantagens e limitações. Perguntar-se se o instrumento meramente apresenta seus pró­prios artifícios, como acontece quando se olha dentro de um caleidoscópio, ou se ele fornece dados que existem independentemente? No caso de o instrumento fornecer essas informações objetivas, ele as distorce ou fornece dados objetivos? Apenas depois de terem entendido o propósito, o funcio­namento, a confiabilidade e as capacidades do instrumento é que eles pode­riam usá-lo com segurança para a coleta de dados.

O instrumento básico que todos os cientistas usaram para qualquer tipo de observação é a mente humana. Será que esse instrumento fornece apenas seus próprios artifícios, sem acessar nenhuma realidade objetiva que existe independentemente? No caso de a mente fornecer informações a respeito do mundo objetivo, ela as distorce? Pelas razões expostas acima, o estudo científico da mente no Ocidente demorou três séculos para ser iniciado após a revolução científica; isso equivale a usar um instrumento por três sé­culos antes de submetê-lo ao escrutínio científico. 

Como já vimos, Wilson expressa o ponto de vista de muitos cientistas quando afirma que fora de nossa mente, existe um mundo objetivo inde­pendente e que, dentro de nossa mente, existe uma reconstituição da reali­dade com base na absorção sensorial e na organização espontânea dos conceitos. A tarefa própria dos cientistas, segundo ele, é dispor corretamen­te as representações interiores da realidade em conformidade com o mundo exterior.(16) Mas o problema, ele reconhece, reside no fato de os cientistas não disporem de nenhum conjunto de verdades externas objetivas por meio do qual as teorias científicas possam ser devidamente calibradas com o mundo exterior. Em outras palavras, os dados empíricos que percebemos, junta­mente com as teorias científicas para explicá-los, consistem todos de repre­sentações mentais; e não temos nenhum padrão pelo qual compará-los com o que supomos ser o “mundo real”.

Como sair dessa enrascada? Wilson sugere que “critérios de verdade objetiva possam ser obtidos pela investigação científica. A chave está em elucidar as operações ainda pouco compreendidas que compõem a mente e em aperfeiçoar o método usado pela ciência de abordar suas propriedades materiais por partes”.(17) Ele supõe que a mente seja de fato constituída de processos cerebrais, mas – como já observei – essa hipótese ainda não foi comprovada cientificamente e, portanto, não é uma verdade científica. Em razão do pouco que os cientistas sabem atualmente com respeito à relação entre mente e cérebro, seria muito mais objetivo considerá-la um tópico a ser investigado com a mente aberta do que supor (ou exigir) que a ciência algum dia venha confirmar as atuais crenças materialistas.

Se mantivermos esse preconceito materialista, não haverá nenhuma probabilidade de surgir uma ciência empírica da consciência no futuro pró­ximo. É mais provável que, se as ciências cognitivas continuarem sendo restringidas pelas suposições do materialismo científico, a consciência seja reduzida a algo possível de ser explorado e entendido dentro dos parâmetros dessa ideologia, como vários pesquisadores, como Francis Crick e Christof Koch, já estão tentando fazer.(18)Exatamente como a cinemática (o estudo fenomenológico da matéria em movimento) precede logicamente a mecâni­ca no estudo da física, a investigação direta e rigorosa da consciência prece­de logicamente qualquer formulação dos mecanismos responsáveis pelo surgimento da consciência.

A ciência moderna nunca desenvolveu uma metodologia introspectiva rigorosa para observar os fenômenos dos processos e estados mentais cons­cientes. William James, o mais notável pioneiro da psicologia norte-ameri­cana, reconheceu a importância de estudar os correlatos comportamentais e neurais dos processos mentais, mas ressaltou o papel fundamental da in­trospecção nessa empreitada.(19) Entretanto, como a mente propende a oscilar entre a agitação e o torpor, ela não é um instrumento confiável para se observar qualquer coisa. Para transformá-la num instrumento apropria­do para a exploração científica, é preciso desenvolver uma atenção com alto nível de estabilidade e vivacidade. James tinha plena consciência da impor­tância de se desenvolver a capacidade de manter voluntariamente a atenção focada,(20) mas reconheceu não saber como realizar tal façanha.(21)

Resumindo, o Ocidente moderno desenvolveu uma ciência sofisticada dos correlatos comportamentais e neurais da consciência, mas nenhuma ciência da própria consciência, porque não conseguiu desenvolver métodos rigorosos e sofisticados para explorar diretamente os fenômenos mentais. E esse é o primeiro passo para se desenvolver uma ciência empírica dos fenômenos naturais de qualquer classe. Assim, com respeito a explorar a natureza, as origens e os potenciais da consciência, os cientistas cognitivos e neurocientistas agem mais como os astrólogos, que examinam atentamente os correlatos entre fenômenos celestes e terrenos, do que como os astrônomos, que examinam atentamente os fenômenos celestes.

Um segundo resultado do desenvolvimento histórico da ciência ocidental é a existência de uma ciência sofisticada da doença mental, mas nenhuma ciência da saúde mental. Na realidade, é pouco provável que exista algum consenso científico quanto aos critérios pelos quais identificar a saúde mental. Tampouco existe alguma ciência no Ocidente que ensine a cultivar uma saúde mental extraordinária ou a genuína felicidade. As teorias grega e cristã da eudaimonia, bondade humana e “prazer proporcionado pela verdade”, foram esquecidas pela ciência moderna,(22) e a própria existência de uma verdade que gere tal bem-estar não tem lugar na visão científica da existência humana ou do universo como um todo.

Em resumo, o Ocidente não tem atualmente nenhuma ciência pura da consciência que revele a natureza, as origens e os potenciais desse fenômeno natural e, igualmente, carece de uma ciência aplicada da consciência que revele os métodos para refinar e intensificar a consciência e, assim, alcançar a eudaimonia. Mas isso não quer dizer necessariamente que todas as outras civilizações humanas ao longo da história sejam igualmente deficitárias.

Trecho transcrito por Darcy Brega

Notas

Uma primeira versão deste ensaio foi publicada sob o título “A Science of Cons­ciousness: Buddhism (1), the Modern West (0)” em The Pacific World: Journal of the Institute of Buddhist Studies, 3a Série, ne 4 (Outono, 2002): 15-31.

1.      Platão. Phaedo. Trad. Robin Waterfield (Nova York: Oxford University Press, 2002), 230A.

2.      John R. Searle, The Rediscovery of the Mind (Cambridge, MA: MIT Press, 1994), 79.

3.       Stephen LaBerge, “Lucid Dreaming and the Yoga of the Dream State: A Psychophysiological Perspective”, em Buddhism and Science: Breaking New Ground, org. B. Alan Wallace (Nova York: Columbia University Press, 2003), 233-58.

4.      Searle, The Rediscovery of the Mind, 97. 

5.      Ver, por exemplo, Daniel C. Matt, “Ayin: The Concept of Nothingness in Jewish Mysticism”, em The Problem of Pure Consciousness: Mysticism and Philosophy, org. Robert K. C. Forman (Nova York: Oxford University Press, 1990); The Essential Kabbalah: The Heart of Jewish Mysticism (San Francisco: HarperSanFrancisco, 1995).

6.      Owen Chadwick, trad, e org. The Conferences of Cassian in Western Ascetism (Filadélfia: Westminster Press, 1958).

7.       Dom Cuthbert Butler, Western Mysticism: The Teaching of Augustine, Gre­gory, and Bernard on Contemplation and the Contemplative Life. 3a ed. (Lon­dres: Constable, 1967), 26. 

8.      John Burnaby, Amor Dei: A Study of the Religion of St. Augustine (1938; ree­dição, Norwich: Canterbury Press, 1991), 52-67.

9.       M. O. C. Walshe, trad., Meister Eckhart: Sermons and Treatises, Vols. I-III (Longmead: Element Books, 1979), 1:7.

10.      Exodo 22:18. New International Version (Grand Rapids, MI: Zondervan Bible Publishers, 1984).

11.      John B. Watson, Behaviorism (1913; reedição, Nova York: Norton, 1970).

12.      Antonio R. Damasio, “How the Brain Creates the Mind”, Scientific Ameri­can 12, n° 1 (2002): 4-9.

13.      Edward O. Wilson, Consilience: The Unity of Knowledge (Nova York: Kno­pf, 1998), 96-7.

14.      Daniel Dennett, Consciousness Explained (Boston: Little, Brown, 1991), 21-2.

15.      Searle, The Rediscovery of the Mind, 247. 

16.      Wilson, Consilience, 60-1.

17.      Ibid., 60. 

18.      F. Crick e C. Koch. “Towards a Neurobiological Theory of Consciousness” em The Nature of Consciousness: Philosophical Debates, org. N. Block, O. Flanagan e G. Güzeldere (Cambridge, MA: MIT Press, 1998), 277-92.

19.      William James, The Principles of Psychology (1890; reedição, Nova York: Dover, 1950), 1:185.

20.      Ibid., 1:416-24.

21.      Ibid., 1:424.

22.       Nesse sentido, um desenvolvimento muito promissor na psicologia moderna é o surgimento da “psicologia positiva”. Ver C. R. Snyder e Shane J. Lopez, orgs. Handbook of Positive Psycology (Nova York: Oxford University Press, 2002).